O meu romance

«Cartas ao meu Eu do outro lado do espelho»

Maria é uma médica de Medicina Geral e Familiar, numa Unidade de Saúde Familiar, que resolve escrever cartas ao seu eu refletido no espelho para falar sobre os cacos que restam da sua vida desfeita.

Mergulhada numa depressão, da qual tenta fugir, porque perita numa outra especialidade médica, recusa-se a permanecer inativa e mergulhada na bruma escurecida da medicação.

Tem motivos de sobra para se encontrar naquele estado, mas só se conhecem quase no fim dos desabafos epistolares.


Um romance em que a personagem reflete sobre casos clínicos que

resolveu e resolve numa Unidade de Saúde, nos arrabaldes da grande cidade.

Mais uma vez, a autora leva o leitor para temas bem atuais: a depressão, a pedofilia, a violência doméstica, o transtorno do espetro autista (Síndrome de Asperger), a gravidez precoce / os métodos contracetivos e doenças terminais.

Sabe que a depressão, segundo a OMS, é um dos principais problemas de saúde no mundo?


Tem episódios dramáticos, mas alguns bem caricatos, lamentavelmente verdadeiros.

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Opinião de ELISABETE BRITO

«Cartas ao meu eu do outro lado do espelho»

14 junho 2024

A depressão é um dos principais problemas de saúde do mundo com que nos deparamos, de acordo com a OMS. Talvez o ignoremos tantas vezes ou não queiramos vê-lo. Esta é uma doença de excelência do século XXI. Aliás, “a principal causa de incapacitação em todo o mundo e ocupa o quarto lugar entre as dez principais causas de patologia” (OMS, 2002).

Com o COVID parece, de acordo ainda com a OMS, ter-se agudizado. Não, não acontece só aos outros nesta sociedade que nos absorve. Diagnosticar e traçar a linha que separa a normalidade da patologia não será assim tão simples. Afinal a tristeza em doses avassaladoras, os dias nublados e o coração apertado num novelo não se medem em laboratórios. Todos eles precisam de observação e não é uma observação qualquer quando estamos diante de uma disrupção que envolve alterações na vida da pessoa, nas suas relações sociais familiares, laborais, culturais.

Falo-te sobre este tema, com o intuito de refletir sobre uma das minhas últimas leituras. Esta é uma das principais temáticas no último romance da escritora Maria Teresa Portal Oliveira - Cartas ao meu eu do outro lado do espelho, sob a chancela da Busílis. Este é mais um dos exemplos da tendência da autora para a abordagem de temáticas difíceis que fazem parte do nosso quotidiano.


Neste livro de 92 páginas, para lá da depressão, deparamo-nos com a pedofilia, a violência doméstica, o transtorno do espectro autista (síndrome de Asperger), a gravidez precoce, os métodos contracetivos e as doenças terminais. Falamos, portanto, de questões sociais que precisam de ser faladas, lidas, debatidas, construindo e desconstruindo o quotidiano. Ignorar que elas existem não é solução. A literatura provoca, incomoda e desafia e esta obra, numa relação dinâmica, reúne os três verbos em uníssono.


Saliento a forma original como a autora seleciona o registo epistolar (as cartas) para abordar estes temas. Temos, assim, um narrador na primeira pessoa, através de uma voz narrativa feminina. Este registo permite que a leitura seja sentida pelo leitor de uma forma muito mais intensa. Ao falar com alguém do outro lado do espelho deste modo cria proximidade.


Apesar de se basear em factos reais, a autora confere-lhe um cunho literário distinto e gradativamente vai-nos sugando para dentro da história através da sua personagem Maria, uma médica que é apanhada nas malhas da depressão. Na contracapa lê-se Maria é uma médica de Medicina Geral e Familiar numa Unidade de Saúde Familiar, que resolve escrever cartas ao seu eu refletido no espelho para falar sobre os cacos que restam da sua vida desfeita. mergulhada numa depressão, da qual tenta fugir (…) recusa-se a permanecer inativa e mergulhada na bruma escurecida da medicação.

Efetivamente estando Maria com uma enorme depressão, as cartas constituem-se como uma forma de falar sem falar, uma forma de libertar os tormentos que consomem esta “alma de luto”. A escrita torna-se, assim, um incentivo perfeito.

A forma como tantas vezes lidamos com coisas banais faz-nos parar e respirar diante do peso que recai sobre Maria e da forma como lida com tudo o que a vida dentro destas páginas lhe trouxe. Tantas são as vidas no mundo real, tantas são as Marias que em silêncio se assemelham a esta médica. Estas sombras povoam os dias de muitos. Só não acontece ou não vê quem não vive no mundo real.

Podes sentir-te sem chão no final e questionar-te-ás, quiçá, se efetivamente conhecias a personagem até então. Conhecias aquilo que ela te quis contar através das suas cartas. Vais perceber que Maria conduz o teu pensamento, pela escrita subtil da autora.

Maria gostava de ter coragem. Mas talvez tenha sido gigantesca a coragem com que enfrentou o que a vida lhe acrescentou. Convido-te a ler estas cartas. Convido-te a sentir, a refletir sobre a sociedade que todos os dias desperta apressada, a olhar para dentro e para o outro.


Dentro destas páginas encontras uma sucessão de episódios que as cartas nos contam e nos permitem voltar ao início e compreender o que espoletou o estado atual de Maria, mas também outros episódios, uns mais caricatos do que outros, uns com mais leveza do que outros. Os vários temas que se sucedem e que passam pelos dias desta médica, mantém a narrativa sem quebra de fôlego. Além disso, permite-nos olhar do outro lado para esta sociedade que nos rodeia, que é aquela que nos traga todos os dias. Uma escrita clara que nos permite conceber diferentes imagens. Através das cartas, a autora cria suspense e é misteriosa a forma como revela lentamente ao leitor o desenho da história da Maria e o guia.

Tal como disse William H. Jass, os verdadeiros alquimistas não transformam o chumbo em ouro, transformam em palavras. Estabeleço, assim, a analogia com a tagline da autora – a alquimia das palavras.

As Cartas ao meu eu do outro lado do espelho leem-se de um sopro, mas não de ânimo leve. Lembra-te de que quando somos apanhados pelas vidas que moram dentro de cada página já não somos mais os mesmos quando chegamos à última página.


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