Escrever é um prazer. Por vezes, é dor, sofrimento. Umas vezes as ideias surgem em catadupa, saltam para o papel, eufóricas, satisfeitas, felizes, e ordenam-se simplesmente sem conflitos nem questiúnculas. Outras vezes, escondem-se atrás de uma parede branca, de um muro intransponível que não desaparece nem à marretada e muito menos por artes mágicas. Ali, as letras saltitam, andam aos pares, arrumam-se em sílabas, em palavras, em textos que têm lógica, que fazem sentido, que tornam as pessoas que os leem felizes. Às vezes, são poesia que levam ao amor, que exaltam o amor; outras, são prosa, histórias de capa e espada, de príncipes e princesas, de cavaleiros e donzelas em perigo, de aventuras intergalácticas, de gente de séculos passados ou de outros que estão para vir… Aqui, as vogais zangam-se com as consoantes, as sílabas resmungam umas com as outras, recusam-se a formar palavras que tropeçam umas nas outras que não se seguram nas linhas tomadas de vertigens inexplicáveis. Então, o exercício torna-se um sacrifício e nada sai. Apenas o vazio se instala e uma sensação de perda, de incapacidade invade o espaço.
Nas alturas boas, que não têm horário fixo nem local próprio, o clique dá-se, o bloquinho sai para fora da bolsa, a caneta em punho e a tinta flui para o papel quer vai ficando riscado, cheio de uns floreados que mantêm o seu equilíbrio e a carreirinha ordenada. Escreve-se ao correr da pena e, quantas vezes, me sinto a correr atrás do aparo que anda sem que eu lhe diga efetivamente para andar. Estas ocasiões surgem mas são poucas. Raramente, um texto é escrito à primeira, sem correções, chamadas e rasuras, e, quando isso acontece, é com um texto manuscrito, nunca com um texto visionado no monitor de um computador. A máquina bloqueia e não sei andar atrás do clique de um rato, que ainda por cima tem o nome de um bichinho de que não sou nem nunca fui fã, excetuando o Speedy Gonzalez e o Mickey, mas quem é que no seu perfeito juízo poderá associar tão simpáticas personagens a esses animais frenéticos de rabo comprido? A mente é estranha em questões de associações e nós é que padecemos. Mas… psicanálise agora, não. Deixemos o poder da mente para outras deambulações e voltemos às letrinhas saltitantes.
Até parece que as vejo a correrem para o papel, a saltarem à corda, a jogarem ao eixo, a descerem as linhas, na busca do seu lugar, sim, porque elas sabem qual o lugar que vão ocupar na história, na poesia que vai surgir. Hoje, sabem mais do que eu, que as vejo numa roda viva, que sinto o seu entusiasmo e paro, meio apalermada, sem saber porquê.
Nas alturas más, nada funciona. Escrever por obrigação, com prazo estipulado, com horário imposto, raramente dá. A caneta na mão e… nada. Apenas fixo o vazio que se enche de interrogações que me maltratam, que me indispõem comigo e com o mundo. A irritação aparece, primeiro surda, depois visível nalguns sinais exteriores de impaciência, de perda de controlo, de angústia mesmo. Vou escrever sobre o quê? Que tema vou tratar? E parece que vejo a criatividade e a imaginação, sentadas em banquinhos baixos, algures na minha mente, amuadas uma com a outra. Por isso, se recusam a brincar, porque escrever é brincar com as palavras. Escrever deve dar prazer. Não, nestas alturas más. O texto vai surgindo com muita dificuldade, as palavras esforçam-se por puxar por outras que se recusam a sair de trás da parede branca ou do muro que alguém construiu e acabam por cair, tropeçando noutras que já lá estão e que desconhecem o seu lugar. O texto vai sendo riscado, não no sentido de escrito, mas no de rasurado, corrigido, remendado, cheio de chamadas e supressões. É difícil ordenar as ideias que se recusam a aparecer perante um texto manuscrito com estas características. Aí, o texto processado tem outras vantagens, pois que as correções à medida que vão sendo feitas colocam tudo no seu devido lugar. Por outro lado, o texto ao ser reescrito, passado a limpo, processado, permite que novas expressões, novas frases ocupem a sua posição nas fileiras ordenadas do discurso. Estes textos sofridos são quantas vezes os melhores, os que têm um estilo mais trabalhado e usam imagens mais sugestivas.
Lembrei-me agora que uns e outros dependem da natureza das fadas que estiverem ao serviço na ocasião. Se forem as fadas boas, a imaginação e a criatividade voam ao serviço da varinha de condão que torna o difícil fácil, o azedo doce, o áspero macio, o duro mole, o frio quente, o molhado seco, o desagradável agradável, o infeliz feliz, o fim início…É o fim de uma história, é o início de uma outra. Nunca nada acaba. Está sempre tudo iniciado, como na vida em que os ciclos se sucedem automaticamente, onde nada se perde e tudo se transforma.
Contudo, se forem as fadas más a servirem a mente, um deus nos acuda, porque tudo é possível. Normalmente, às fadas más chama-se bruxas, porque, na realidade, só conheço uma fada má das histórias, a rainha das fadas que fadou a Bela Adormecida e que a pôs a dormir por mais de cem anos até ser acordada por um beijo de amor. Depois, foi-se mantendo nas histórias a fazer o seu papel, personagem maldita mas muito necessária para o desenvolvimento integral das crianças tal como o lobo mau e umas outras personagens antipáticas.
O amor pela escrita! Quando ele aparece, não há fada má que resista e o texto volta a fluir e a correr e a surgir do nada. A azáfama volta a instalar-se e as letras e as palavras correm à uma para a página branca que as recebe e abraça carinhosamente enquanto vai sendo riscada.
Escrever é um prazer. Em qualquer dos casos é bom, quando se é um “escrito-dependente” como sou. Confesso. Sou viciada na escrita. Não há mesmo nada que me dê mais prazer do que o ato de escrever, a não ser talvez… talvez… o de ler que lhe está intimamente ligado. Afinal são as duas faces da mesma moeda.
Maria Teresa Portal Oliveira
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