Os altifalantes, colocados estrategicamente no campanário da igreja, vertiam música popular em altos berros entremeada de anúncios.

Era o primeiro sinal da festa que se avizinhava. Faltava só uma quinzena.

O galo Córó, no seu poleiro, inimigo mortal dos tais falantes (podia lá tolerar que aqueles animalejos de lata pudessem cantar mais alto do que ele), mexeu-se desconfortável e resmungou em surdina:

-Lá tinham de vir aqueles outra vez!

A ciumeira de Córó, pois de ciúmes se tratava, até tinha razão de ser.

Durante a festa, na capoeira, ninguém lhe ligava, pois só prestavam atenção às vozes que emanavam dos de lata. E era verem-nas todas derretidas, as galinhas, as patas, as peruas, as frangas... por aquelas vozes maviosas que lhes cantavam canções de amor. Um sem fim de suspiros, sussurros e ais, cacarejos e piados em surdina. O pobre do Córó, coitado, bem se empenachava todo, alisava as penas e compunha a crista; de nada lhe valia, ninguém o olhava.

Até mesmo a Ti Jaquina o ignorava, toda empolgada com a festa!

Pudera! Era o único acontecimento importante por aquelas redondezas não contando o Natal, a Páscoa, o S. Martinho e as vindimas! Era a única festa que tinha pistas de carrinhos elétricos, carrocéis e outros brinquedos para a pequenada. O algodão doce, as pipocas e as farturas também não faltavam! E os comes e bebes para os adultos, o frango de churrasco, as fêveras, as sardinhas assadas e o tradicional caldo verde... Hum! Tudo regado com bom vinho tinto de pipa aberta para a ocasião...

Aliás, para muitos, durante os dias de festa, eram mais os “bebes” do que os “comes”. Olha o Neca sapateiro! Quem queria solas e meias solas ou capas que as tivesse posto com tempo! Ele estava de férias, como costumava dizer. Desde aquele dia aziago em que a cair de bêbado se agarrara a trabalhar e ao coser um sapato, cosera o dedo polegar da mão direita, que o deixara marcado para toda a vida (o dedo lá estava, mas era um bocado de carne morta, insensível!), que fechava a lojeca onde exercia o seu ofício. Também o Zequinha jornaleiro festejava a seu modo a Senhora. Durante o ano, ninguém o podia ver enfrascado; porém, nas Festas da Senhora, celebrava condignamente desde o primeiro ao último dia.

Córó conhecia os dois homens muito bem de outras andanças: o Zequinha costumava trabalhar nas terras do solar de Ataíde- lavrava, arava, podava, cultivava,... e a Ti Jaquina servia-lhe uns opíparos almoços, pois dizia que quem não era para comer não era para trabalhar. Quem gostava desse tratamento de encher a pança era o Zequinha, grande apreciador do tempero e das boas receitas de tão afamada cozinheira. Esclareça-se desde já que a fama da Ti Jaquina ultrapassava a vila e expandia-se por essas terras fora, mesmo na capital, onde os Ataíde viviam durante o ano e onde se deslocava frequentemente, sempre que havia um jantar ou um almoço de mais cerimónia, porque viver na capital nunca!

A Ti Jaquina crescera no Solar dos Ataíde, pois era afilhada da velha senhora Dª. Maria. Sendo a mais velha de dez irmãos, a madrinha tomara conta dela, educara-a (ela não quis estudar para não deixar a madrinha) e fora companheira de brincadeiras de Ana.

Mais tarde, a morte prematura de Ana de parto e do marido, um mulherengo e vadiolas, num desastre na neve quando faziam esqui no Monte Branco e houvera uma avalanche, transformara-a em ama de Fernando de Ataíde, então com apenas sete anos. Hoje era a governanta do solar ou a “patroa” como todos lhe chamavam. O Quim, esse vinha lá a casa quase todos os dias. Embora não fosse filho da Ti Jaquina- “Os homens são todos iguais, uns falsos, uns mulherengos que só querem o bem bom! Ainda está para nascer o que me há-de comer as papas na cabeça! T’arrenego Satanás!” e benzia-se por três vezes- o Quim era seu afilhado e ela tratava-o como se fosse sua mãe, pois criara-o da idade de cinco anos quando ficara órfão de mãe, já que o pai metera pernas ao caminho e ninguém sabia qual o seu paradeiro.

E, de repente, na sua vida de solteirona por convicção, duas crianças com origens tão diversas foram inundadas com o seu amor maternal e experimentaram um pelo outro carinho fraternal. E as partidas que pregavam! Córó lembrava-se do avô lhe ter contado como tinha ficado sem uma data de penas só porque quiseram brincar aos índios. O avô Cócóró fora alvo da chacota de toda a criação! Nunca lhes perdoara e o Córó fugia agora dos filhos deste Fernando como da peste para não lhe acontecer o mesmo. Galo prevenido...

Fernando era advogado, um bom advogado da capital e, pelas notícias que chegavam à vila, todos o procuravam para fazer parte deste ou daquele partido, e quem sabe se do próprio Governo, mas ele, gargalhando, costumava dizer que nunca lhe poriam uma trela. Gostava de liberdade e dava-se com todos e, principalmente, dizia o que lhe dava na realíssima gana, que ninguém lhe podia pedir contas, nem ele tinha de as prestar.

Gostava de se gabar de que tinha amigos e inimigos em todos os quadrantes – da extrema-direita à extrema-esquerda e, quando lhe pediam ajuda para a resolução de qualquer problema, ele não costumava perguntar de que partido era. Isso era-lhe completamente indiferente. A integridade não era apanágio deste ou daquele partido, mas era-o das pessoas, enquanto indivíduos.

O Quim, educado pela mãe adotiva, partilhava da mesma opinião, mas lá lhe tinham conseguido pôr o cabresto, mas só até certo ponto, como afirmava. É que nas últimas eleições tinham feito dele Presidente da Junta de Freguesia com uma lista de independentes e vencera com uma maioria mais que absoluta.

A sua personalidade era por demais conhecida e o povo sabia que era um homem íntegro e de uma palavra só e, se preciso fosse, não pensava duas vezes para mandar uns valentes cachaços em quem deles precisasse e ninguém apresentava queixa, ninguém se atrevia. É que o seu físico assustava qualquer um e os que com ele haviam andado na escola, ainda recordavam alguns tabefes recebidos, quando faltavam ao respeito a alguém, nomeadamente à Dª. Aninhas, a professora, uma santa alma a precisar de reforma, pois que, na altura, já estava meio surda e a ganapada adorava pregar-lhe partidas idiotas. Não era por mal, porque todos a adoravam, mas as crianças conseguem ser muito cruéis, às vezes.

O edifício da escola, do Plano Centenário, albergava hoje o Museu de Artesanato e a Biblioteca Ana de Jesus, onde se guardava todo o espólio reunido pela professora durante os trinta e tal anos em que ali fora professora. Amiga de todos, abraçara com entusiasmo a terra e entregara-se-lhe por completo, buscando as origens e estudando a toponímia da região, recolhendo peças de artesanato de outros tempos e dos tempos modernos, já que muitas das peças lhe haviam sido oferecidas pelos ex-alunos, por aqueles a quem ela incutira o bichinho da investigação, do estudo do património local. Quanto à Biblioteca, eram os livros de literatura infantojuvenil, que ela fora comprando e que dera aos seus alunos para eles lerem e assim enriquecerem a sua mente juvenil, ansiosa de novos conhecimentos e de novas pistas para a procura de outros conhecimentos.

Joaquim não se lembrava de se ter alguma vez sentido diferente ou discriminado, porque todos os alunos da escola eram tratados da mesma forma e todos liam os mesmos livros, que guardavam religiosamente. Ainda hoje lá se podiam ver, velhos de tão manuseados e lidos, mas com um óptimo aspeto e bem conservados, já que ao incutir o gosto pela leitura também lhes incutia a noção de que um livro era um tesouro e os tesouros têm de ser bem guardados.

Hoje, a escola tem oito salas, é um P3, mas tem treze turmas e por isso a escola funciona em desdobramento. E quem diria que, tantos anos depois, ele seria um dos professores da escola. Tanta coisa mudara desde aquela época!

-Tade, sôr presiden…

Sentado à mesa da taberna do Ti Tónio, o Quim, atordoado com a berraria dos altifalantes, que desde as 18h não se calavam até à meia-noite, procurava corrigir os trabalhos dos alunos que trouxera consigo. Eram composições, ou, como modernamente lhe chamavam, exercícios de expressão escrita, onde a criatividade dos miúdos se podia ver a cada passo. Entretido com o trabalho do Artur, um garoto com uma imaginação prodigiosa, a saudação apanhou-o distraído, pelo que houve necessidade de ser repetida.

-Tade, sôr presiden…

Levantou os olhos do caderno e viu o Zequinha jornaleiro, já mais pra lá do que pra cá. Mas ainda o reconhecia, vá lá…

-Começas cedo, ó Zeca! A festa ainda nem começou e já estás dessa forma!

-Homessa, sôr presiden… Só o sal… saudei, não… não pe… pedi sermões…- barafustou o Zeca, trocando os passos e quase se estatelando no empedrado da rua.

-Ó homem de Deus! Senta-te, bebe um café e come uma sande de presunto, ao menos para forrar esse estômago.

-Homessa, sôr presiden… homessa… homessa…

E o Zeca lá foi aos tropeções pela rua, resmungando contra quem o queria impedir de festejar a Senhora em condições. E ainda o ouviu ao longe: «Não… não que… querem lá ver o fe… fedelho!»

Regressou ao trabalho, mas não se conseguiu concentrar, porque o pensamento se refugiava em recordações de um passado que alguém lhe oferecera tão diferente do que lhe havia sido destinado.

Não se recordava da mãe, embora a Ti Jaquina lhe mostrasse o retrato de uma moçoila do campo, bem avantajada de carnes e com uma cara de boneca de loiça de porcelana. Era linda, com umas bochechas coradas e risonhas e uns expressivos e redondos olhos cor de mel, em constante interrogação… Do pai nem lhe falava- “É um estafermo!”- mas também não precisava, porque ele saíra todo filho da mãe.

Contudo, quando algum miúdo (e tantos havia!) lhe dizia que não sabia quem era o pai, o Joaquim sentia um aperto no coração. Como é que se podia abandonar um filho? Talvez por isso nunca tivesse casado!

-Boa tarde, senhor presidente.

-Boa tarde, senhor prior. E os preparativos?

Dera o mote às queixas do bom do padre que, todos os anos, se queixava contra o ruído dos altifalantes, contra a festa mundana e social, que lançava para segundo plano a festa religiosa, contra a comissão de festas que gastava mais fundos do que os que conseguia angariar, contra a sovinice das pessoas que cada vez davam menos para as festas, contra um sem número de pessoas: algumas bem culpabilizadas outras nem por isso.

O Joaquim ouviu os seus desabafos, pagou-lhe uma cerveja e depois deixou-o rumo ao solar.

No caminho, ainda encontrou o Neca sapateiro, que arengava junto à fonte dos Milagres contra as injustiças da vida e também contra as forças da vila que não tomavam conta dos pobres.

O pobre do bêbado tinha estacionado há vinte e tal anos e insultava o antigo regime forte e feio. Uns catraios insultavam-no e atiravam-lhe com caroços de azeitonas para o acirrarem ainda mais.

Mal viram o professor partiram em debandada, pequenos pardais fora do ninho. “Miúdos- pensou- são todos iguais. Também já ele fizera o mesmo, mais o Fernando e os do bando. Que terroristas que eram!”

-Anda, Neca. Bora, que a festa ainda vem longe.

E lá o conseguiu arrastar até à loja, onde foi cozer a bebedeira, para a retomar no dia seguinte.

Distraído com os pensamentos, não viu o automóvel, que, em excesso de velocidade, por pouco não o apanhou. Só a travagem o despertou.

-Então, Quim, agora fazes parte da comandita dos bebedolas cá do sítio?- ouviu uma voz sarcástica a gritar-lhe de dentro do BMW.

Levantou a cabeça e sorriu. Só podia ser o Fernando, fanático das correrias de automóveis, “um piloto de Rallies frustrado”, como admitia.

-Grande maluco - retorquiu. -Pena que o cabo Silva não esteja aqui para te multar por excesso de velocidade. E podias ter a certeza de que não era eu que te tirava a multa.

-E eu deixava-a seguir para tribunal - desafiou-o o outro. O cabo Silva, companheiro de brincadeiras dos dois, tornara-se um homem sisudo e “chato”, como Fernando lhe chamara uma vez. E desde então que não morriam de amores um pelo outro. - Então, entras ou não?

-Mais uma vez sozinho!

Fernando não respondeu. Sorriu e encolheu os ombros. Nesse ponto, a Mafalda nunca cedera. Detestava festas populares e só vinha para o solar com os miúdos, quando as festas acabavam.

Sabia que o Neca pensava que a Mafalda, menina de boas famílias, era uma das Tuchas, das Nuchas,  Lilis, Micas,… que apareciam nas revistas da sociedade. Ela nunca aparecera, que isso não permitia, pois prezava demasiado a sua privacidade, mas tinha-lhes as manias, segundo o Neca. Aliás, ele, Neca não compreendia como o Fernando podia ter casado com aquela … inha que não tinha nada em comum com eles.

E Fernando quase lhe dava razão. Muitas vezes, de noite, quando se deitava tarde a preparar um caso ou quando a insónia (coisa rara) o visitava, matutava sobre a assunto. Não conseguia arranjar uma explicação plausível. Aquilo fora… tiro e queda, desde a primeira vez em que a vira e… continuava. Pragmático, acabava sempre por desistir de descortinar razões e acabava com o pensamento que lhe era extremamente gratificante “O coração tem razões que a razão desconhece”.

-Anda. Entra. Estás a ficar um resmungão de primeira apanha! Isso é da idade ou defeito de profissão?

Quando chegaram ao solar, Córó, que andava a pavonear-se pelo terreiro, fugiu espavorido como se tivesse visto o diabo em pessoa. Os dois riram-se e Fernando comentou:

-Até parece que o estafermo do galo nos conhece de algum lado! Já deve é estar bom para uma arrozada!

-“Estafermo és tu- cantou o galo- E bem podes esperar pela tua arrozada! Ainda bem que os diabos não vieram, mas não tardam, já sei!”

Nessa noite, na festa, jogaram ao chincalhão com os do grupo, alinharam numa suecada que durou até altas horas e quando regressaram a casa (o Joaquim vivia mais no solar dos Ataídes do que na sua própria casa), vinham bem acompanhados com um grãozinho na asa. Ainda bem que eram férias!

A vila fervilhava de emigrantes, que regressavam todos os anos por aquela altura para as festas, e, de estrangeiros, atraídos pelas festas que tinham renome. Nestas alturas, os estranhos eram em maior número do que os da casa e, por isso, não era nada de extraordinário que estes se procurassem nos locais mais típicos e aí se concentrassem.

No domingo da Festa, depois da missa solene com a presença da Banda Musical, e do almoço oficial, em que todos os importantes da vila marcaram presença, o pessoal esperava a saída da procissão no átrio da Igreja Matriz.

O Joaquim e o Fernando tinham lugar marcado sob o palio, um por ser quem era e o outro pelo cargo que desempenhava. Porém, nenhum gostava do que os esperava. A procissão era digna de se ver, mas do lado de fora.

O Joaquim, à sombra do tolde de uma das barracas de farturas, que abundavam no átrio, conversava com um dos feirantes, quando sentiu uma sensação estranha. Não era a primeira vez que isso acontecia, mas desta vez era um mal-estar súbito que se instalara, uma opressão no peito. Fernando, que conhecia bem o amigo, deu pela sua súbita palidez e observou o gesto que fazia inconscientemente, esfregava o peito.

-Estás bem? - soprou-lhe ao ouvido.

-Estou. Devo ter comido alguma coisa que me fez mal. Vou tomar umas Águas das Pedras para ver se passa.

Na ocasião, o caso ficou encerrado. Porém, quando na procissão deu com aqueles olhos escuros que o observavam atentamente, o intenso mal-estar voltou a fazer-se sentir e foi com sacrifício que chegou ao fim.

-Anda! Vais já para o médico! - disse-lhe Fernando.

-És parvo! Isto já passa! Só preciso de ficar sozinho!

E, afastando-se, procurou isolar-se o que, naquele dia, era quase impossível. Inconscientemente, os seus passos levaram-no ao cemitério. Junto da campa da mãe, um homem muito bem vestido depunha uma flor, uma simples rosa cor-de-chá, as rosas favoritas da mãe, tinha-lhe dito a Ti Jaquina.

Estacou, como pregado ao chão. Nenhuma força do mundo o conseguiria arrancar dali. No entanto, não ficou espantado. Era como se esperasse… Entretanto, o homem, acabada a sua oração, levantou-se e viu-o. Ficaram os dois imóveis e mudos. Não houve palavras trocadas nem gestos. Cada qual seguiu na sua direção.

O Joaquim foi rezar junto ao túmulo da mãe e o homem partiu e nunca mais foi visto. O Joaquim nunca contou a ninguém, nem sequer ao seu melhor amigo, o encontro com o passado que tivera no cemitério.

Mas… ainda hoje recorda a dor imensa daqueles olhos escuros que o fitaram na procissão!

Maria Teresa Portal Oliveira

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