O escritor está lá, impávido e sereno, de marcador na mão, sempre a necessidade imperiosa do contacto físico com o papel, enquanto o narrador anda cá e lá, numa lufa-lufa para procurar dar um fio condutor à história, ao conto, ao romance que tem de ser escrito, se houver um prazo estabelecido como é o caso.
Indeciso na posição a ocupar- autodiegético ou heterodiegético, o autor ainda não decidiu, vai procurando arrumar as personagens, nomeadamente as principais, as mais rebeldes e quezilentas, com exigências às vezes atrevidotas que não se podem tolerar.
Por vezes, não consegue resolver o assunto à primeira e vem uma mão ameaçadora, arranca a folha, amassa-a e atira-a para o cesto dos papéis.
E há que recomeçar.
Desta feita, já todos estão mais cordatos. Se derem razão, a trovoada do autor pode provocar nova tempestade e acabar tudo para todos. Até pode ser que decida mudar a história e arrumar aquelas personagens na gaveta dos esquecidos, um local físico na secretária para onde o autor atira começos de histórias, versos para um poema, personagens já imaginadas para utilizar um dia, frases bonitas que viu e copiou, citações merecedoras de reflexão, personagens criadas observando as pessoas que estão no café e fantasiando sobre as suas vidas atendendo às características que mostram, ideias para contos, sensações olfativas- visuais- tácteis- auditivas - que o impressionaram, tempestades que o fazem voar alto…
Naquele dia, depois da primeira tentativa, o narrador atarefou-se andando num vaivém de entrar na história e procurando dar-lhe um rumo e saindo para apreciar como estava a ficar. O escritor estava lá, impassível, uma ruga profunda na testa, a ver como as ações se compunham. Detestava o fio cronológico dos acontecimentos. Isso era dar a papinha toda feita ao narratário (simplifiquemos para leitor) e o narrador sabia disso. Andava, pois, numa azáfama, a mudar as frases nucleares, a preencher os vazios com descrições e, principalmente, a tornar aquelas personagens interessantes, não do ponto de vista físico, que os contos não vivem disso, mas do psicológico.
Parecia estar tudo encarreirado quando o cavaleiro decidiu que era ele a casar com a princesa e não o príncipe enfeitiçado que vinha a desempenhar o seu papel desde o início da história. O quê? Dar cabo de tudo?
Chamou a atenção do escritor que, desta vez, estava mesmo embrenhado no conto que prometera escrever e que não esteve com meias medidas. Riscou o Cavaleiro na folha e em todas as outras por onde ele passara. Mais tarde, quando digitalizasse o conto, estaria atento à saída de vez do Cavaleiro.
O suado narrador, exausto, agradeceu mentalmente e foi quando o escritor decidiu que o narrador seria observador com uma visão omnisciente. Saberia tudo sobre as personagens e o desenrolar da história e, para a enriquecer, ainda haveria uma outra narrativa encaixada, uma lenda, contada pelo príncipe enquanto fora uma árvore na floresta negra, um feitiço lançado pela rainha má que…
Ah! É verdade! Vocês não conhecem a história. Pois, já está escrita mas ainda não foi publicada.
E tudo isto para vos contar que o narrador tem um trabalho danado para fazer com que tudo escorra do fio do pensamento do autor para o papel para que a sequência textual não se perca.
A digitalização decorreu quase logo e, como sempre acontecia, houve alterações, correções, acrescentos, mudança de palavras por outras mais ricas, inclusão de recursos expressivos, corte de diálogos ou de frases inteiras.
Relido o trabalho, uma dor de cabeça… Que título dar à história? Às vezes, começava por aí. Tinha o título e a história jorrava. Desta vez e até porque todos tinham andado à “batatada”, perdoem a expressão, o título não aparecia.
Foi quando o escritor teve uma ideia. Como era professor e gostava de ler as suas histórias aos alunos, tinha-lhes prometido a história para a aula que seria no dia seguinte (explicada a questão do prazo), pedir-lhes-ia sugestões para o título.
E assim foi. Querem saber o título?
Não sei. Eu sou o caderno onde ele escreveu a história mas não estive na aula. Deve ter sido bem criativo, podem crer…
Maria Teresa Portal Oliveira
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