Todos sabemos que os alunos andam na escola obrigados para aprenderem tudo aquilo que não podem fazer por imitação e que exige aprendizagem. Das três categorias (obrigados satisfeitos, obrigados revoltados e obrigados resignados), a segunda é a dos alunos problemáticos que, mais facilmente, engrossam as fileiras do insucesso e do abandono escolares. Neste grupo, estão muitos dos envolvidos em casos de bullying (um flagelo nas escolas atuais!), tanto agressores como vítimas.
E copio aqui o relato de uma “Experiência Pedagógica” que saiu no jornal Reflexo, em julho de 2004 (a que cortei algumas partes menos interessantes para este contexto):
“Um ano, uma experiência pedagógica.
Esperava-nos um carrossel maluco cheio de expectativas, de esperanças, de dissabores, de altos e baixos, sem monotonia nem descanso. (…) Apenas um tentar quotidiano que ia dando resultado ou não, e exigia carradas de paciência nem sempre à disposição. (…)
Andámos pelos limites! Único consolo: éramos apenas dez os professores martirizados e poderíamos ser muitos mais, se os alunos não tivessem sido colocados todos na mesma turma. Traço que os unia - problemas comportamentais que se refletiam na aprendizagem, mas, na maior parte dos casos, espertos que nem ratos.
Como motivar aquela malta buliçosa, barulhenta, travessa, indisciplinada que transformava o professor no bode expiatório dos problemas que enfrentava em casa? Miúdos que viviam sozinhos e faziam o que lhes apetecia sem serem questionados, miúdos de pais alcoolizados, miúdos com dinheiro sem se saber de onde vinha, miúdos que eram ignorados ou preteridos…
Todas as atitudes tiveram de ser pensadas, repensadas, pesadas e pena foi que os dez professores não conseguissem dirigir a classe com a mesma batuta, ou pelo menos seguindo a mesma partitura. Foi tão difícil! Como uniformizar atitudes de homens e mulheres, com filhos pequenos, adolescentes ou mais crescidinhos, com vidas tão díspares, com os seus desânimos e pesares, alegrias e tristezas? Quais os direitos dos professores? Há um que todos conheciam e conhecem - ser professor dá direito a carregar com os problemas dos outros. (…) E os desabafos, as trocas de impressões diárias entre uns e outros pouco ajudavam a suportar a desilusão, o sentimento de incapacidade, de incompetência, de raiva que nos invadiam quando as estratégias que reformulávamos constantemente não pareciam resultar. E os métodos variavam, mas todas as tentativas para chegar até eles faziam ricochete numa parede à prova de bala, numa parede de indiferença, de atitudes provocatórias. E vinha a reflexão em casa, no caminho, na escola. Que vou fazer? Como vou fazer? Ter estudado tanto na vida para depois não saber como agir perante estes garotos, potros selvagens que fugiam até de uma carícia! Havia ocasiões em que chegava a vir à tona um pequeno arrependimento por ter escolhido esta profissão - ser professor/a. Tanto desgaste para quê? Conselhos e mais conselhos… sermão e missa cantada e para quê? Teimavam, teimavam e tudo voltava ao mesmo tal como os sempre em pé. Porém, havia outras ocasiões em que uma pequena centelha parecia brilhar no fundo do túnel que surgia, esporadicamente, quando menos se esperava, e quantas vezes sem ter sido preparada nenhuma estratégia especial… Então, nessa altura, a alma ganhava um novo alento e as forças multiplicavam, centuplicavam.
De entre os miúdos sobressaía um.
Arisco, esquivo, rebelde. Contrariava sempre pela negativa. Como fazê-lo superar um tão grande complexo de inferioridade, uma tal sensação de insegurança, uma tão baixa autoestima?
«Eu não sei, eu não sou capaz». Tanta revolta num catraio tão pequeno!
Cansados, quantas vezes arrepelávamos os cabelos, inconscientemente. Onde estava a paciência? Onde estava a capacidade de dar a volta? (…)
Nesse dia, decidi fechar-me na minha concha e deixar correr. Estava cansada, cheia de problemas pessoais que me absorviam praticamente a tempo inteiro e o Jorge estava cada vez pior no dizer dos outros professores. (…)
A minha abstenção quase «forçada» durou umas três semanas. Não liguei absolutamente nada ao miúdo e, da mesma forma, a todas as comunicações que me faziam só dizia: «Passa a escrito! Depois eu vejo!» Neste tempo, o Jorge partiu um vidro, destruiu três cestos de papéis aos pontapés e agrediu severamente um colega. Juntei a papelada toda e o inevitável aconteceu - um conselho disciplinar.
Ainda aturdidos com a minha reação desusada, os colegas olhavam-me de soslaio, enquanto eu ia relatando as ocorrências num tom neutro. Não tomei qualquer atitude defensiva em relação ao Jorge; pelo contrário, abstive-me e analisei tudo friamente e sem tomar partido. Substancialmente diferente da diretora de turma que eu fora!! Perante esta minha tomada de posição, o conselho de turma começou a procurar atenuantes para todas as ações desregradas do rapaz. (…) Afinal, o Jorge até era um bom rapazinho que só precisava de mão firme e de que todos os professores tomassem uma atitude concertada e coerente. Deixei-os falar e fiquei espetadora. Não estava para conversas, por um lado, e, por outro, o meu silêncio estava a dar resultados nunca esperados. A minha cabeça parecia uma bola de pingue- pongue, pesada e simultaneamente cheia de ar quente, extremamente quente. Parecia pesar toneladas. (…)A discussão acalorava-se, porque não se entendiam quanto à sanção a aplicar. O coitado do Jorge já era tão maltratado pela vida! Filho de pai alcoólico e de mãe prostituta educava-se sozinho na escola da rua de um bairro de lata da grande cidade. Os seus companheiros de brincadeira tratavam por tu a droga, aliás, traficavam-na mesmo e eram ases do gamanço, do pequeno e do grande roubo, de assaltos à mão armada ou sem arma, para já não falar de outros crimes puníveis pela lei.
Consciente de que não aguentaria muito mais tempo, retomei a reunião, anunciando num tom absolutamente vago quais eram as sanções passíveis de serem aplicadas. Pessoalmente, eu era a favor da suspensão das aulas com serviço à comunidade, porque o Jorge não deveria ser deixado à solta no ambiente social em que vivia. Assim aconteceu, porque eu assim quis, porque, se deixasse, teria saído dos assados em que se metera apenas com uma repreensão. (…) Este foi um caso difícil, mas foi possível regressar aos carris, com um esforço coletivo e efetivo trabalho de grupo por parte dos docentes.
Não é fácil ser professor e, … porque nós, professores, não somos ouvidos, apenas somos massa anónima para cumprir o que os outros concluem ser bom para a Educação nos seus gabinetes aquecidos ou arrefecidos, conforme a estação do ano.” (Com oito anos e está atualíssima!).
Maria Teresa Portal Oliveira
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