Olhava para a televisão sem ver, o que me acontece amiúde, pois o pensamento deambula em liberdade por outras paragens nem sempre risonhas nem solarengas. Há dias tristes e cinzentos, preenchidos de um nada invisível, só sentido pela alma que se arrepia momentaneamente. Uma corrente de ar inexistente na realidade, que se impõe no coração.
Esta noite foi um desses dias. Ouvia música clássica que me apazigua mas sem prestar grande atenção, quando senti uma picadela no dedo indicador da mão direita.
A pequena dor tirou-me do meu devaneio. Era o bico do marcador a desafiar-me para a escrita. Bem no meio da página- um ponto negro. E lembrei-me daquele exercício em que se relata a grande importância que se dá a um pormenor e se esquece o todo. É por demais conhecido. Todos veem o ponto e a página toda branca é atirada para segundo plano.
Teria sido o malandro a fazer o ponto? Acrescentei mais dois e ficaram reticências. O que é que o leitor ia imaginar se não havia nada antes?
Tinha de fazer o mapa da história se fosse muito complicada: registar o narrador, as ideias, escolher as personagens, localizar a história no espaço e no tempo, preocupar-me com o arco narrativo, escolher um bom 1º parágrafo e um último ainda melhor…
Naquele momento, fiquei apenas a olhar o ponto negro acompanhado pelos outros dois e acho que a minha mente estava vazia de ideias, a que não era estranha a queda dada nas obras da estrada. Obras de S. Torcato que não acabam mais e um perigo para os peões. E para os despistados como eu, pior ainda.
Distraída, desenhei um tijolo. Ótimo. Agora tinha três pontos e um tijolo. Ia longe….
E comecei com um exercício de brainstorming: ponto, pulga, três pontos, três pulgas a pulgar; tijolo, casa, casota… Já tinha uma personagem e um local. Onde existe uma casota há cão, embora não seja assim tão linear… e lá estava lançada a voar com a imaginação.
O narrador ia ser o cão e, se tinha casota, tinha dona, era bem tratado. E apareceu a Alicinha, 5 anitos, que trazia na mão uma coleira toda bonita com o nome Tejo.
Eis as personagens, o espaço- a casota estava perto do portão de entrada da quinta, nos arrabaldes da cidade. E o tempo não teria grande interesse para o caso. O atual, século XXI, por exemplo.
As ações? Essas ainda estavam a ser “cozinhadas” algures no País da Imaginação.
Para já, ficavam a reticências como um sinal de viso de que algo estava a ser misturado no almofariz da Alquimia da Palavra.
E coloquei o tal ponto, neste caso, ponto final nesta crónica.
Como será a história da Alicinha e do Tejo? Qualquer dia, conto-a. Boas leituras!
Maria Teresa Portal Oliveira
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