Agarro na caneta. Vou escrever. Gesto habitual, ritual inconsciente que se repete de tempos a tempos, necessidade psíquica, escape a tantas informações armazenadas que, de tanto fervilharem, transbordam enchendo páginas e páginas de uma caligrafia arredondada e certinha.
Ainda nem bem decidi sobre o que vou escrever e já as ideias saltam, gaiatas, para o papel, baralham-se e escapam saltitando de linha em linha “Quem primeiro chegar ao fim da linha ganha!”, enquanto a caneta desliza suavemente no papel indo e vindo num frenesim sem parar procurando agarrá-las e organizá-las para que deem sentido ao texto.
Teimosas, protestam e, mesmo quando agarradas pela fralda da camisa, recusam permanecer no lugar que a caneta lhes atribui na sua azáfama de fazer bem o seu serviço, escrevendo em bom Português, isto é, sem erros ortográficos, com frases completas e, de preferência, num estilo ligeiro e compreensível, sem grandes complicações frásicas.
E, tão atarefada anda a caneta correndo da esquerda para a direita, num vaivém constante, que nem me apercebo do que faz, também eu distraída por aquela desatada correria.
Quando deito contas à vida, verifico que desvenda os meus segredos, expõe um a um os meus mistérios, mesmo aqueles que jazem enterrados bem nas profundezas do meu inconsciente e aos quais jamais facultara acesso ao exterior. Fechados a sete chaves, aí teriam de permanecer, inacessíveis a tudo e a todos num sono profundo de que não acordariam nem ao fim de cem anos.
Zangada, atiro com a caneta que assim se atreve a fazer o que nunca ninguém se atrevera sequer a vislumbrar. “Atrevida! Coscuvilheira! Como te atreves?” Porém, logo me arrependo. É a minha favorita. Tão macia! Corre tão bem sobre o papel! Quase nem dou conta de que escrevo e, por isso mesmo, ela abusara da minha preferência.
Levanto-me e procuro-a pela sala. E se estivesse partida? E se já não escrevesse? E se o aparo tivesse partido?
Esqueci-me de dizer que é uma caneta de tinta permanente esta criminosa que aqui é acusada e que agora procuro ansiosamente por baixo dos móveis de madeira encerada da sala. Debaixo da estante grande, recheada de livros de alto a baixo, ela olha-me acusadoramente.
Ao fim de tantos anos, de tanto serviço efetuado e de amizade mútua e desinteressada ser assim tratada desta forma! Ser assim desconsiderada!
Estendo a mão e recebo um esguicho de tinta azul. Protesto? Não, que ideia a minha! Apenas o bico está deslocado e a tinta escapa-se. Com as mãos manchadas de azul, regresso à mesa de trabalho.
Permitirei a divulgacão dos meus segredos? Fico durante um longo momento a pensar, cabeça mergulhada nas mãos em concha que lhe servem de almofada e, sem dizer nada, resolvo... sabotar o trabalho feito até ali.
Procuro o tinteiro que coloco bem no meio da folha quase completamente escrita, onde as ideias fujonas parecem ter finalmente adormecido, pego na caneta e preparo-me para lhe encher o depósito. Atabalhoadamente, do bico, agora no lugar, sai um esguicho de tinta para o papel e, não contente com o resultado, dou um encontrão ao tinteiro que se vira de cangalhas transformando a folha num mar azul onde as ideias adormecidas se afogam e para sempre mergulham no esquecimento.
A caneta olha-me agora inquisitivamente sem entender tamanha e desusada falta de jeito, não mostrando o mínimo interesse pelo que aconteceu ao papel. Está duplamente exausta por ter corrido atrás das ideias, linha após linha, e pelo susto que apanhara ao sentir-se projetada pelos ares até aterrar debaixo da estante onde está a sua grande amiga “Enciclopédia Luso-Brasileira”. De barriga cheia, não parece muito motivada para voltar à sua tarefa de escriba, preferindo descansar no seu estojo macio que, apesar dos anos, continua limpo e intacto.
E, nesse dia, eu sei que sonhou com o dia em que fiz dez anos, pois ela foi uma das prendas de aniversário- uma bela e elegante caneta de tinta permanente Pelikan, verde e preta, com o meu nome gravado.
Só no dia seguinte, ao arrumar a secretária, dou com a folha azul onde, no canto superior esquerdo, ainda se lê “A vida prega-nos parti...” o -das já não se lê, desaparecido naquele mar azul.
Não sei porquê, ainda conservo essa folha.
Maria Teresa Portal Oliveira
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