Atónito, observava do espaço o planeta cinzento-acastanhado, com poucas clareiras teimosas a um azul desmaiado. Aqui e ali, umas manchas vermelhas indicavam incêndios ainda em ação. A lua mal se avistava naquela espessa nuvem branca, um anel à volta do planeta. Quase sentia o cheiro de fumo e esgoto.
Que acontecera? Cativado pela beleza do Planeta Azul não acreditava que uns 300 anos terrestres pudessem ter causado tal despautério. Onde estava o paraíso?
Aterrou num pedaço de terra calcinada. Um castanheiro, disse-lhe o computador, erguia os ramos ao alto, despidos, numa súplica que ninguém ouvia.
Rodeava-o a terra queimada, toda esturricada e o mundo era preto e cinzento. Que calor abrasador! Ele estava quase morto e sentia a seiva desaparecer sob o sol incandescente.
Quanto tempo se passara… Séculos…
Kaysak aproximou-se e procurou ler o seu pulsar. E viu tudo o que se passara.
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Era uma sementinha isolada no alto do mundo. Não sabia como lá tinha ido parar. Talvez no bico de uma ave, talvez nos braços do vento Norte que aparecera com modos violentos, há muito tempo, no vale onde vivia.
A escuridão rodeava-a e ela tinha medo. Não houve resposta ao pedido de ajuda do seu choro descontrolado. O silêncio ouviu a sua súplica, ficando mudo e quedo.
Os dias foram-se escoando e ela foi sofrendo modificações até se aperceber de uma ligeira claridade que a chamava e dizia:
-Anda! Força! Já falta pouco. Para cima. Upa!
O esforço foi recompensado com um friozinho delicioso na pontinha fujona daquela prisão escura.
Pela primeira vez, viu o sol subir e descer as escadinhas do céu da sua trajetória diária (como pôde comprovar!) até se esconder no ocaso. Então, um manto escuro reconfortante e luminoso cobriu tudo. Milhares de luzinhas acendiam-se lá longe. Aqui, bem pertinho, a sementinha – plantinha ouvia uns sons que se tornaram conhecidos e bem-vindos. Os animais noturnos – os mochos, as corujas, os ouriços-cacheiros, os ratos, as cobras, os morcegos – despertavam para a vida e chiavam, piavam, rosnavam, rastejavam, deslizavam junto de si. Eram os seus companheiros da noite, quando a insónia não a deixava adormecer nos braços da terra amiga, seu abrigo e sustento.
Também a acompanhava o pequeno regato brotado das entranhas de um enorme pedregulho granítico que a abrigava do frio nortenho. Tinha nascido há algum tempo com uma enorme tempestade.
-O mundo vai acabar - pensavam os que tinham sido apanhados pelos relâmpagos esgrimistas e os trovões ribombantes.
Assim tinham falado os seus amigos animais.
O regatito de nada se lembrava. Apenas agradecia a oportunidade de conhecer o dia e a noite e de poder desbravar caminho serra abaixo, sem grandes preocupações, rindo e cantando entre as pedras da serrania até mergulhar num enorme rio deslizante cujas águas revoltas e potentes corriam para o mar.
Desconhecia o seu nome e só mais tarde, com a chegada das aves migratórias, os dois ficaram a conhecer esse rio tão famoso por onde se escoaram durante séculos, nos rabelos, os pipos do precioso néctar, uma das marcas promotoras do país, levando o nome da cidade de onde partia por esse mundo fora.
Por enquanto, apenas se divertiam os dois lá no alto do monte e o pequeno regato, de vez em quando, saía do seu curso e dava-lhe pequenos abraços para lhe mitigar a sede.
Tempos felizes esses do início dos tempos para ambos…
A encosta fervilhante de castanheiros fazia a plantinha sonhar. Quando nasceu o primeiro ouriço e depois mais outro e outro sentiu umas picadelazitas; depois, abriam-se e saíam as castanhas alegres e palradoras. Que docinhas! Tão perfumadas! Escondiam o sabor da terra e do ar da montanha.
E a roda secular foi-se movendo e chiando… lentamente … cantando os segundos e construindo a teia firme da história do lugar.
Tantas coisas maravilhosas viu a planta, agora árvore majestosa, durante o seu crescimento e outras nem tanto… Casais de namorados tinham-se escondido de olhares indiscretos a coberto das suas ramagens e tronco; a passarada vinha em bando fazer ninho nos seus ramos exuberantemente ramificados; incêndios florestais tinham destruído a floresta do outro lado do rio; carros tresmalhados haviam caído nas ondas alterosas matando condutores e passageiros…
Mas, em S. Martinho soalheiro, o povo fazia uma enorme fogueira e assava as castanhas para depois se mascarrar com a cinza.
Nessa altura, vinha a aldeia toda: velhos e novos juntavam-se, no alto do monte, e divertiam-se a jogar à malha, a saltar as chamas, a beber e a comer até altas horas da noite. Era um dia de folguedos para o castanheiro, um dos mais belos do ano.
Algumas centenas de anos mais tarde, quando o Manuel da Ti Ana se tornou presidente da junta, transformou aquele lugar num miradouro, com mesas e bancos de pedra, casas de banho e até forno e grelhador para o povo cozinhar as fêveras e os frangos.
E os piqueniques no Miradouro do Castanheiro tornaram-se habituais e muita gente de visita ao Douro Vinhateiro fazia ali uma paragem obrigatória para admirar a paisagem e beber o ar puro e agreste da região.
A beleza daquela zona montanhosa a todos cativava, com o rio a contorcer-se no fundo do vale, onde, numa das margens, se acantonava a linha de comboio, qual pista de rapazinho ali colocada para recreação da alma.
Com o progresso e o aparecimento das estradas alcatroadas e, mais tarde, das autoestradas e das vias rápidas a encherem os ares de ecos estranhos e de aromas desagradáveis, o comboio desapareceu bem como a paz e a tranquilidade.
Do seu posto privilegiado, o castanheiro assistiu, impotente, ao avanço tecnológico, à invasão das máquinas, ao alastramento dos químicos, dos biológicos, das bactérias, dos fumos, à frequência das chuvas ácidas, a um progressivo aquecimento global… e nada pôde fazer.
Permanecia alto e majestoso, progressivamente mais fraco, mais despido, mais andrajoso, mais mendigo pedindo a esmola da vida. Estava isolado no alto do monte, a morrer. A seiva ainda teimava em correr no seu tronco centenário, mas só muito raramente atingia os ramos e, esporadicamente, uma minúscula folha raquítica conseguia brotar para logo mirrar sob o sol abrasador.
O seu amigo regato diminuía de ano para ano. Era apenas um fiozinho de água que ainda furava até às raízes do seu amigo para lhe mitigar a sede. Há anos que não via nem ouvia o chilrear de um pássaro. Há anos que não havia magustos. A aldeia era habitada por autómatos que arrastavam os seus esqueletos sedentos, sequiosos, esfomeados … pela estrada empoeirada de uma vida lazarenta e infértil.
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KAYSAK afastou-se da árvore e ficou a brilhar ofuscando a luz do sol escaldante e destruidora. Transmitia uma luz fresca, aprazível e uma sensação de paz. Gostara do que vira nas memórias do velho castanheiro.
Que belo planeta! Do alto da sua energia diáfana, olhou em redor para a paisagem esturricada, poeirenta, árida, morta. Ainda haveria uma ténue esperança?
Soprou sobre o castanheiro que, como que injetado com o soro da vida, remoçou. Pequenos nódulos começaram a aparecer nos seus ramos despidos, raquíticos e esqueléticos. Uns bocaditos de erva apareceriam cautelosamente na terra junto do tronco.
O pequeno ribeirito também sentiu que as forças regressavam e o caudal foi aumentando progressivamente e, regressando aos bons velhos tempos, com um jato de água envolveu o velho castanheiro num abraço amigo e saudoso regando-lhe as raízes ávidas e sequiosas.
Que alegria!
Kaysak afastou-se emanando a sua luz salvadora e continuou a sua rota.
No dia seguinte, pela primeira vez em muitas décadas, todo o vale explodia em verdes de várias tonalidades e respirava o ar fresco e vigoroso.
A natureza renascia e, com ela, o planeta foi recuperando muito lentamente.
Ainda viu uma tampa, da qual não se apercebera, a abrir-se e um vulto a espreitar. Então fora em cidades subterrâneas que os habitantes se tinham refugiado? Foram saindo e respirando em grandes golfadas o ar fresco desconhecido. As três últimas gerações já tinham sobrevivido debaixo da Terra em cidades artificiais, enquanto outros viajavam no espaço em busca de um planeta com condições semelhantes às oferecidas pela Terra.
Kaysac não era visível, pelo que ignoravam o sucedido.
Faltava-lhe colocar o sol no respetivo lugar, pois aproximara-se demasiado da Terra e o Guardião do Espaço resolveu tomar a seu cargo a vigilância de tão belo planeta e visitá-lo frequentemente para evitar novas catástrofes.
E apontou no Diário de Bordo- ano 2255- visita ao Planeta Azul - Terra.
Teria o homem aprendido?
Maria Teresa Portal Oliveira
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