─ Psst! Psst!
Acordo estremunhada ou estarei a sonhar acordada?
Espreguiço-me lentamente, enquanto lanço uma breve olhada à direita, à esquerda,... não vejo nada... não ouço mais nada. Fora sonho, pela certa!
─ Psst! Psst!
De novo o mesmo som bichanado a chamar-me a atenção. Olho em redor, agora já mais presente - felizmente estou sozinha em casa! - e...nada.
─ Psst! Olha para aqui!
O som parece vir da minha frente e vejo, estupefacta, uma folha de papel branca, que, toda empertigada, se procura manter em pé. E, na mão (É verdade! A folha tinha uma mão), segurava um lápis muito bem afiado que me piscou um olho, com um ar muito bem-disposto e ansioso. Ainda pensei estar a endoidecer, mas os dois riram-se da minha cara de lorpa (quem não a faria numa circunstância idêntica?) e do meu ar embasbacado.
─ Nada de mais natural no Reino da Fantasia! - disseram, ainda me gozando por cima, como se tivessem lido os meus pensamentos.
─ Pois, mas eu habito no mundo real e, que eu saiba, tudo isto não pode estar a acontecer!
─ Quem te garante? ─ teima a folha, com cara de poucos amigos.
Fecho os olhos por alguns minutos. Quero recompor-me e ficar bem acordada, pois só posso estar a dormir... Só me faltava começar a discutir com uma folha de papel! Não, então bem me poderiam levar para Nogueiró, sem lugar para hesitações.
─ Ei... Olha lá, fechaste os olhos para quê? Vês como ela não me vai ajudar?
Desta vez quem falara fora o lápis, que acabara num lamento quase, quase a choramingar.
À palavra ajuda, não pude deixar de reagir. Era como se fosse o meu “Abre-te, Sésamo!”
Abri os olhos e os dois lá estavam, em cima da mesa, junto do livro que andava a ler. A folha sentara-se, ou seja, dobrara-se a meio e o lápis, bem esse tinha duas grandes lágrimas a rolarem-lhe lentamente dos olhitos que me tinham observado com aquele ar maroto e ansioso. Ouvi-me a dizer “Ajuda?”
Os dois puseram-se em pé de um salto e começaram a falar ao mesmo tempo e de uma forma tão atabalhoada que não entendi nada e comecei a rir, pois formavam um par cómico.
Calaram-se olhando-me como se não estivesse boa do juízo e o lápis disse, em tom acusatório:
─ Ainda gozas com o mal dos outros?
Calei-me e, depois de muita conversa sem sentido, acabei por compreender o que ambos me queriam dizer, antes, pedir.
O lápis pertencera a um escritor de Literatura Infantojuvenil e, devido à sua morte prematura num acidente de viação, ficara sozinho, sem dono e com uma história por contar.
─ O quê? Como é que podes ter uma história para contar, se o escritor faleceu? ─ interrompi-o.
Lançou-me um olhar carregado de censura e continuou a desfiar os seus problemas sem me ligar nenhuma, como se eu fosse uma ave rara, a quem não se devia dar grande importância. Começava a irritar-me tanta arrogância e petulância. Afinal quem se julgava ele?
Tapei os olhos com as mãos e suspirei. De repente, o silêncio rodeou-me por todos os lados.
Destapei os olhos e vi-os pousados sobre o tampo da mesa ─ um lápis e uma folha branca, absolutamente normais e iguais a tantos outros lápis e folhas.
O cansaço prega-nos partidas de todo o género, por isso até as folhas e os lápis já me falavam!
E resolvi escrever tudo isto na folha, utilizando o lápis. Caso nunca visto!
O lápis começou a escrever e a arrastar a minha mão ao longo da folha que ia ficando preenchida com uma caligrafia redonda e muito certinha que demorei a reconhecer como sendo a minha. Quanto ao conteúdo que ia saindo a negro da ponta afiada do lápis, que não se gastava nem mostrava sinais de cansaço, tive dificuldade em acompanhar.
Era uma história que falava de um menino e de um cavalo branco que trotava numa imensa folha de papel cheia de linhas, que tinha fugido de uma história e pedira ajuda ao lápis para lhe reescrever uma nova história, que lhe agradasse mais, já que na outra, ele tinha de se separar do seu amigo que ia para a cidade estudar. Não consegui perceber se o catraio era índio, cowboy ou filho de lavradores...
Já estava a ficar “estourada”, quando subitamente o bico se partiu.
Fiquei parada, sem ação durante largos minutos, pois que a sensação dolorosa subia da mão pelo braço acima, tal a velocidade que o lápis imprimira à escrita. Não sabia muito bem o que fazer; daí ter feito o que é natural nestes casos ─ afiei o lápis.
Entretanto, uma pergunta procurava atabalhoadamente encontrar uma saída airosa: Como é que o lápis pertencera a um escritor já falecido, se o comprara na véspera no hipermercado? Que história mais maluca!
─ Nada é maluco nesta vida! Claro que me refiro à minha. Vocês, humanos adultos, são tão complicados! Querem sempre saber o porquê de tudo. Para quê? ─ ouvi o lápis resmungar, já que mais uma vez me adivinhara o pensamento.
Não era fácil encarar estas coisas com normalidade, por muito desempoeirada de espírito que fosse e por muito que adorasse deixar a imaginação à solta e segui-la por aí sem grandes preocupações!
Pousei o bico na folha e ei-lo que partiu novamente à desfilada, como se tivesse tomado o freio nos dentes. De repente, até me pareceu que o cavalo era o lápis. Continuou durante mais algum tempo, mas subitamente estacou e uma palavra surgiu na folha ─ Fim.
Recostei-me na cadeira, o braço a doer, a mão a latejar e o lápis estranhamente sem vida.
Olhei a folha... estava completamente branca. Não havia nada escrito! “Estou mesmo a ficar zaruca!” pensei.
─ Não estás nada! Obrigado! Obrigado, minha amiga! ─ ouvi de novo a vozita e o relinchar de um cavalo.
Algures, no Reino das Histórias, um miúdo e um cavalo estão felizes!
Sozinha, na sala, a folha e o lápis à minha frente são apenas uma folha e um lápis.
Maria Teresa Portal Oliveira
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