Algures, num mundo estranho, viviam as letras e, numa outra zona mais luminosa, as palavras.
Sempre que um escritor utilizava uma delas, ela fazia um estranho bailado até sair pela ponta da esferográfica, do marcador ou das teclas do teclado do computador.
E logo, logo, se formava uma outra para ocupar o seu lugar. Aí viviam todas as palavras existentes em cada uma das línguas. Umas eram muito utilizadas. Outras, muito raramente. Só os escritores, os estudiosos de cada língua lhe davam uso.
Eram pucos os iluminados, mas havia alguns que eram reconhecidos como mestres das palavras, muitos deles só depois de mortos.
Não era o caso dela. Escrevia para os pequeninos de chucha que a olhavam com os olhitos abertos cheios de curiosidade e juntava o canto às palavras proferidas. Quantos batiam palminhas. Eram as lengalengas, os trava-línguas. Nos jardins de infância, juntavam as danças de roda e os desenhos coloridos às palavras que ela dizia.
Depois eram as aventuras que a desafiavam para a adolescência e os problemas que afligiam a juventude bem sérios e que era necessário cortar pela raiz. Não fugia a expô-los nem a provocar os miúdos na apresentação para que chegasse fundo ao cerne da questão: descobrir quem podia estar a padecer do mal tratado ou já tinha abandonado.
É que antes de ser escritora tinha siso professora, o que lhe dava um conhecimento intrínseco das reações de pequenos e jovens aos problemas expostos.
Nas horas noturnas e mais introspetivas era a vez dos adultos, tanto em poesia como em prosa.
No caderno colocado junto do sofá reclinável em que se sentava para ouvir música ou ver televisão, as personagens iam surgindo e os enredos saltavam para o papel.
Outras vezes, no escritório, sentada à secretária frente à janela, sonhava acordada, como diziam, via sem ver e partia para outras esferas.
Algumas vezes procrastinava, ficava parada sem saber o que fazer. Era altura de partir para outro local, pegar em papéis, em blocos, em folhas esparsas e ler o conteúdo. Quantas vezes encontrava a solução para prosseguir com o conto, a novela, o romance ou o conto infantojuvenil.
Todos os dias, as palavras corriam para aquela zona, chamadas pela escritora que tinha uma metodologia de trabalho rigorosa. Sem hora certa, ou de manhã ou à noite, era um corridinho… Até já tinham feito uma espécie de escorrega para chegarem mais depressa.
Um dia, as palavras lembraram-se de fazer um concílio.
Algumas estavam desagradadas com a vida que levavam e pretendiam fazer greve.
Eram exploradas pelos escritores, obrigadas a fazerem horas extraordinárias que não eram reconhecidas. Queriam maior brilho do que fazerem parte de enredos e serem publicadas? Quantas se tornavam famosas por construírem o livro X ou Y?
Eram umas ingratas. Não chegaram a vias de facto porque a escritora adoeceu. Andavam agora lá pela Terra umas maleitas estranhas que matavam sem olhar a idade, género, raça ou credo.
E ela não foi a única. Muitos outros também deixaram de usar as palavras e, de repente, viram-se no desemprego ou quase.
As palavras orais eram mal utilizadas na maior parte das vezes, pois a cultura e a escolarização estavam no reino da amargura. Frases mal construídas, palavras deturpadas, erros crassos e começaram a sentir falta de quem as usava corretamente ou tinha a obrigação de assim fazer.
Amarfanhadas, no mundo das línguas e dialetos, iam vogando sem destino.
Certa manhã, foram novamente chamadas ao trabalho com urgência. Os escritores recomeçavam a sua tarefa. Alguns tinham falecido, ela não.
E foi através da sua escrita que tomaram conhecimento do quanto o mundo dos homens padecera com aquela maldita pandemia e, por arrastamento, também elas tinham sofrido.
Voltaram a sentir-se vivas e nunca mais protestaram com o trabalho que faziam e era tão gratificante para quem as escrevia e para quem as ia ler.
Bem hajam, escritores, que tornam a viagem por este mundo bem mais agradável. Sem sonhos e sem projetos não se vive. Vegeta-se. Ela estava sempre metida em projetos. Ainda bem e que durasse por muitos e longos anos.
Boas leituras!
Maria Teresa Portal Oliveira
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