Ruivinho acordou de muito mau humor, naquela manhã de invernia. O frio apertava mais que em dias anteriores, nevara durante a noite e a montanha acordara vestida de branco. Como se não bastasse, o nevoeiro espalhara o seu manto leitoso pelas encostas reduzindo a visibilidade e invadindo mesmo a vila, ajudando a humidificar e a gelar ainda mais objetos e seres animados.
Detestava o inverno que o obrigava a ficar junto da manada, sob a supervisão da égua Branca, a babysitter e educadora dos potros. Preferia sair com o pai, o garanhão chefe da manada, o cavalo alazão Relâmpago que comandava as tempestades e as dominava. Pelo menos, Ruivinho estava plenamente convencido disso. Para cúmulo, não se podia encontrar às escondidas com o seu amigo, o Pedrinho, porque quebraria a regra de nunca se darem com seres humanos que os escravizavam para os cavalgarem.
-Os cavalos nasceram para serem livres e poderem correr como a brisa, trotar como o vento, galopar como o ciclone. Uma sela sobre o dorso é impensável, inaceitável.
Ruivinho não entendia tal implicância e sempre se abstivera de comentar o seu envolvimento com o Pedrinho que acontecera por acaso, nos últimos dias de verão.
Ruivinho beberricava no regato que atravessava o prado onde pastava, quando, de repente, viu na superfície espelhada do ribeiro um rosto de criança. Assustado, relinchou e recuou; porém, a curiosidade foi mais forte do que o desejo de fugir. Ele não se assustava com facilidade. O rosto do rapazito, todo pintalgado de sardas, atraía-o. Gostava dos olhos marotos de um verde-mar, que o olhavam com um ar igualmente atento.
Separados pelo riacho cantante, que corria ligeiro, ficaram a olhar-se olhos nos olhos, fixamente. Depois, como que atraídos por um íman, meteram-se na água fresquinha e encontraram-se no meio da corrente. Ruivinho resfolegou e Pedrinho, muito lentamente, levantou a mão e fez-lhe festinhas na crina. A um novo sobressalto de Ruivinho, o pequenito começara a bichanar-lhe ao ouvido.
-Como és lindo, meu alazão. A tua cor canela é única. Já viste como somos parecidos?
E abanava a cabecita ruiva cheia de caracóis rebeldes e largos. Ruivinho quedou-se no mesmo lugar e deixou que a mãozita, agora mais confiante, o acariciasse. Era bom e provocava-lhe arrepios que sabiam bem.
Um súbito espirro do pequenito mandou-os para fora da água fresca do arroio e lançaram-se impetuosamente em correrias desenfreadas e soltas no prado verdejante. Foi uma tarde inesquecível, inolvidável.
Depois desse primeiro encontro, muitos outros se sucederam, sempre às escondidas dos olhares dos homens e da manada. Ambos tinham jurado guardar segredo e os dias sucederam-se alegres e agradáveis na companhia do outono e do inverno. Todos os dias se encontravam, mesmo que por breves instantes. Tinham-se tornado inseparáveis.
Naquele dia, Ruivinho estava impaciente e irrequieto. Não aceitava a ordem de ficar sob a vigilância de Branca, porque já não era nenhum bebé. Conhecia os perigos da montanha pois já era o seu segundo inverno. Sabia que o frio podia matar e que os animais selvagens, o lobo, o chacal aproveitavam a ocasião que os mais incautos lhes proporcionavam. Inquieto, corria à volta do cercado, à espera de uma aberta, de uma distração da Branca. Se isso acontecesse, ele daria o salto e procuraria o Pedrinho.
No entanto, apesar de fazer figas, a Branca, conhecedora de quem tinha sob a sua tutela, não abrandava o passo e tinha-o sempre debaixo de olho. Relâmpago não era só o chefe da récua, era também um garanhão temido e respeitado. Nem pensar em desagradar-lhe! Se chegasse e o filho não estivesse ali, cairiam raios e coriscos. Assim, Branda não desgrudava do Ruivinho que estava cada vez mais nervoso e excitado, rinchando de descontentamento à medida que o dia avançava e nada o acalmava.
-Preciso de ver o Pedrinho! Preciso de ver o Pedrinho! - pensava constantemente. Era como que uma ideia fixa. - O Pedrinho precisa de mim!
Ainda tentou saltar a cerca, mas quase partia uma pata que ficou um tanto magoada. A égua Branca tratou-o carinhosamente mas ficou de muito mau humor e ralhou-lhe asperamente.
-Eu é que vou ser culpabilizada! - censurou-o. - Que ideia tão descabida e despropositada! Quem pensas que és para saltar uma cerca tão alta?
Ruivinho, cabisbaixo e tristonho, acabara por se deitar na palha da grande caverna, à moda de cavalariça, ao abrigo do vento agreste que soprava lá fora e da neve que voltara a cair em força.
-Se ao menos eu soubesse que o Pedrinho está bem! - foi o último pensamento antes de adormecer.
Os olhos ameaçadores e malévolos brilhavam apesar do sol encoberto e da neve que caía abundante, naquele fim de tarde. Eram dois riscos amarelos e ameaçadores.
Aterrorizado, Pedrinho olhava para a entrada da cova subterrânea onde se refugiara, bem escondido no emaranhado das raízes da árvore que levantava os braços nus aos céus numa súplica. Conseguira a custo fazer uma fogueira, com mãos trémulas e alguns paus húmidos que, depois de várias tentativas frustradas, tinham finalmente abraçado um fogo vago e titubeante. Com os olhos cheios de lágrimas e a tremer de frio e de pavor, Pedrinho procurava espevitar o lume e afastar o perigo que pressentia chegar cada vez mais perto. “Se ao menos o Ruivinho aqui estivesse!” pensava. Até agora nada acontecera graças ao fogo salvador, mas sabia que quando se apagasse a alcateia atacaria.
E recordou, cheio de remorsos, as palavras prudentes e sensatas da mãe:
-Não saias. O tempo está mau e é perigoso ir para a montanha. Até há perigo de avalanche!
Mas ele desobedecera na ânsia de se encontrar com Ruivinho e agora ali estava, em perigo de vida. Começava a ficar seriamente apavorado, porque a luz tremeluzia e reduzia de intensidade e os uivos ouviam-se cada vez mais próximos. Até já conseguia sentir a respiração arfante do lobo que encabeçava o ataque. Pegou num ramo, que propositadamente não colocara na fogueira para lhe servir de arma agressora e defensiva e preparou-se para o pior. Nunca fora medricas e havia de vender cara a vida.
De crina ao vento e narinas abertas gozando o ar puro e fresco nos pulmões, galopava a toda a força ao encontro do seu amigo. Sabia que Pedrinho estava em perigo e que tinha de o salvar. Galopou, galopou, avançando a custo, pois que se enterrava frequentemente na neve, e ganhando novo alento a cada nova dificuldade. A montanha agigantava-se e o regatinho nunca mais aparecia.
-Estranha hora para jogar às escondidas! Estarei perdido?- pensou.
Impossível. Conhecia a montanha como as suas próprias patas… Importa dizer que o Ruivinho sempre fora muito senhor do seu nariz e tinha um poderoso sentido de orientação. Saía ao pai! Apesar do frio intenso que caía rigoroso e inexorável, sentia que o suor lhe inundava os flancos. Continuou a galopar, a galopar… e ouviu os uivos.
Gelado, parou repentinamente e perscrutou a noite escura que entretanto descera e se instalara sobre vales e montanhas. Lá longe, uns vultos escuros sobressaíam na neve alva.
-Os lobos! - relinchou num frémito. - O Pedrinho!
E recomeçou a galopar agora com mais vontade e esforço.
Pedrinho tremia como varas verdes. Até os dentes chocalhavam uns com os outros.
-Vamos, Pedro, coragem! - procurava animar-se.
Ergueu o ramo que terminava numa ponta afiada e enfiou-o pelo buraco na direção do primeiro animal que, esfaimado, se arrastava já pela cova. Ouviu-se um uivo lamentoso e Pedro teve a certeza de que o atingira.
Uma grande restolhada lá fora, seguida de relinchos, uivos e som de pancadas surdas deu ânimo ao miúdo que, de gatas, lá foi avançando, pelo buraco em direção à saída da cova.
A lua aparecera, após o nevão, enorme e branca lá no céu, enchendo a terra alva de reflexos e de brilhos. O luar dava à Terra uma nova luz e as coisas adquiriam outra configuração. Ruivinho, pois dele se tratava, distribuía coices e patadas à esquerda e à direita, parecendo nem sentir as mordidelas que alguns, mais atrevidotes, conseguiam dar.
A chegada de Pedrinho ao campo de batalha veio complicar as coisas para a alcateia. O líder, derrotado ao primeiro coice, afastara-se com os maxilares partidos e sangrando abundantemente. Pedro, de arma em punho, lado a lado com o Ruivinho lá ia distribuindo pauladas para todos os lados. Não falhava uma. Cansados e exaustos, uns e outros não se queriam dar por vencidos nem admitir a derrota.
Novas pancadas surdas e contínuas de cascos a baterem na neve endurecida puseram um fim imediato à luta. Todos à uma se viraram para o local de onde vinha o som e a ninguém surpreendeu ver a manada avançar sob o comando de Relâmpago. Vinham em socorro de Ruivinho que sabiam estar sob perigo iminente.
A alcateia, cauda metida entre pernas, pôs-se ao fresco, antes que os resultados fossem ainda piores.
Quando os cavalos chegaram junto de Ruivinho e de Pedrinho, Relâmpago destacou-se do conjunto e, lançando chamas pelos olhos, fitou-os de forma ameaçadora e intimidativa.
O cavalinho relinchou baixinho e Pedro pôs-lhe a mão no focinho, transmitindo-lhe uma calma que não sentia. O perigo que vivenciara estava ainda demasiado presente para poder ser apagado tão rapidamente. Contudo, sabia que Ruivinho se arriscara por sua causa. Não fugira ele por uma abertura existente na caverna que todos julgavam intransponível quando todos o supunham adormecido?
Relâmpago mexia os cascos, batendo-os nervosamente na neve dura. O culpado era o humano, sabia-o, e sentia uma vontade enorme de lhe dar uma patada; por outro lado, compreendia as razões do filho.
E o rosto de um outro menino, o Carlinhos, substituiu o de Pedro. Carlos fora seu amigo, tinha a mesma idade de Ruivinho.
Numa noite de temporal como não houvera outra por aquelas partes, a sua casa fora arrastada por uma avalanche e todos tinham ficado soterrados. Ainda hoje visitava a campa do seu amiguinho, lá no alto da montanha, onde o sol e a terra se encontravam sempre que aquele se punha.
Pedro olhava-o persistentemente, pois sabia que dali é que podia vir o perigo. “Que maravilha! Tal pai, tal filho!”
Os dois juntos pareciam que o fogo descera à terra sobre aquele pedaço de terra gelada e desnuda coberta com um mando branco e gelado.
Ao ouvir a sua exclamação, Relâmpago sentiu-se mais calmo. O miúdo gostava verdadeiramente do Ruivinho. Sentia isso no ar que respirava e observava também fascinado aquela cabecita ruiva que tinha a mesma cor da sua pele. Se fosse um cavalo poderia ser seu filho.
Foi quando o grupo de homens se começou a ouvir. Enfrentavam os rigores da montanha em busca do Pedrinho. Muitas lanternas e tochas e muitos gritos aflitivos “Pedro! Pedro!” apelavam pelo menino que acreditavam estar perdido.
Era a vez dos homens se preocuparem com um dos seus. Estáticos e extáticos, ficaram a olhar uns para os outros. Ninguém se atrevia a dar o primeiro passo, a fazer o mais pequeno gesto e homens e cavalos vigiavam-se mutuamente. Apenas os dois, Ruivinho e Pedrinho, se mantinham juntos, unidos pela mão que continuava pousada na crina do cavalinho e por uma grande amizade que todos sentiam ser uma realidade.
O sol da alvorada lançava já os primeiros raios pálidos e róseos no horizonte, quando todos regressaram a casa: uns para a montanha amiga e acolhedora, os outros para a vila ainda adormecida que ficava no seu sopé.
Não houve zangas nem proibições e tanto Pedrinho como o Ruivinho continuaram a encontrar-se durante muitos anos até o alazão, sucessor do seu pai que morrera numa avalanche como o seu amigo Carlos, deixar de ser o chefe da manada e se acolher definitivamente a um estábulo onde foi acarinhado pelo Pedro, homem feito, veterinário de profissão, que chorou a sua morte como a de um irmão.
Mandou embalsamar a sua cabeça e tem-na à entrada de casa, a tomar conta dele e faz-lhe uma festa sempre que entra e pensa “Viva, Ruivinho, como vai ser o dia?”
Lá, onde está, Ruivinho relincha e toma conta do seu amigo até se poderem juntar novamente.
Maria Teresa Portal Oliveira
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