Era como um sargento do exército. Senhora de uma voz poderosa, não permitia desobediência e não repetia ordens. Só falava uma vez e era logo obedecida. Quem a ouvisse ralhar, nunca mais queria repetir a experiência.
Era uma professora à moda antiga, diziam os encarregados de educação, os seus admiradores, porque os outros comentavam à socapa que era uma bruxa e qualquer dia era alvo de um processo disciplinar. Não usava toco nem cabelo desgrenhado e sujo, muito pelo contrário, possuía uma estranha beleza aliada a uma juventude mais aparente do que real. Verdade, verdadinha, já entrara nos ─enta mas parecia uma catraia, uma jovem nos vintes quando muito.
Era voz corrente o caso de que um pai crescera para ela e que ela lhe pusera travão apenas com o olhar e o discurso que tinha para os alunos: «Ainda está para nascer o aluno ou o homem (e aqui baixara propositadamente o tom de voz) que me insulte ou me toque sem levar troco. E mais, já não sai do lugar». O pai, pelo sim pelo não, recuara, perdera a atitude de machão, de galarote inchado e acabara por ouvir as palavras calmas da professora que lhe dava conhecimento das atividades ilícitas em que andara envolvido o seu filho para ter três faltas disciplinares em apenas uma semana.
A fama precedia-a e raramente tinha problemas. À socapa, na sala dos professores, ainda dera uma boa gargalhada com os colegas a quem narrara as suas aventuras e desventuras.
─ Vocês nem calculam a quantidade de vezes que fui tomada por aluna em várias das escolas por onde andei. Então, quando estive na Secundária é que foi para acabar. Numa reunião de professores com os pais, um dos encarregados de educação recusou-se a falar perante uma aluna e, até se convencer de que eu era na verdade uma professora, foi o cabo dos trabalhos. Que hei de fazer?
E ria-se, mostrando a dentadura certa e branca num riso extremamente gaiato.
─ Olha, quando é que vais mostrar a idade? Na tua família são todos assim? ─ perguntara-lhe uma colega muito mais nova e que parecia uns bons vinte anos mais velha, cheia de inveja.
─ Não, filha, corre no sangue das mulheres. Somos todas assim. Já os homens, como ficam carecas muito cedo, aparentam mais idade que a que têm. Mas ainda bem que é com eles ─ rematara, atirando nova gargalhada bem-disposta.
A Maria tinha muitos casos anedóticos e, danada para a brincadeira, era uma ótima parceira para convívios e festas, desde que não lhe pisassem os calos. Quando isso acontecia, virava fera… e quem a enfrentasse que tivesse cuidado e evitasse as suas garras afiadas e as suas palavras incisivas.
Naquele dia de final do primeiro período, na sala dos professores, não reinava propriamente a calma nem a ordem. É sempre assim! Alunos e professores enveredam pelo mesmo caminho e andam todos uma pilha de nervos: uns porque objeto de avaliação, outros porque seus avaliadores.
Maria andava particularmente nervosa com a turma de que era diretora.
Tinha alguns casos difíceis que exigiram a intervenção da psicóloga da escola, da assistente social da câmara e ainda o Tribunal de Menores. Andara numa roda-viva durante todo aquele tempo e a intervenção no terreno mal começara. Tanta burocracia! Tanta areia na engrenagem! E os miúdos é que sofriam com isso. Não tinham quem lhes desse a mão e continuavam a viver situações inaceitáveis, apenas porque a engrenagem da máquina da segurança social emperrava aqui e ali, às vezes na secretária do senhor X que apenas fazia trabalho de secretária e mal, pois não dava seguimento aos casos, não os despachava. Outras vezes, vinham respostas negativas, porque o caso não era tão grave quanto teria de ser para poder ser tratado com mais humanidade. Tantos pesos, tantas medidas e, feitas as contas, tão poucos eram os ajudados.
E, para acabar o período, o caso bem escaldante dos dois Ds, como secretamente lhe chamava. O David preocupava-a particularmente. De feitio arredio e quezilento, com um corpanzil que lhe acrescentava peso e medida, os seus dez anos eram facilmente transformados em catorze e aos muitos defeitos que tinha ainda acrescentavam mais alguns inventados do diz-se diz-se da escola que a muitos enganava. Ainda no outro dia se apercebera de que o professor de Educação Física tinha andado a dar ouvidos à má-língua e, como ele, devia haver outros. Nem sempre uma longa carreira profissional é sinónimo de maturidade, de bom senso, de uma preparação cinco estrelas para tratar dos problemas mais graves. O Daniel, apesar dos seus cinquenta anos, era um imaturo, um insensível e, embora não o dissesse em voz alta, considerava-o um incompetente que ainda contribuía para agravar as situações. Não conseguia controlar os alunos e marcava faltas a torto e a direito ou então, pior ainda, resolvia as coisas à chapada sem medir as consequências do que fazia.
O incidente dera-se na última Terça-Feira em que ferrara uma chapada no David que o levara ao hospital e enfrentava agora uma queixa na GNR. Já ninguém percebia nada a começar por ela que tentara aproximar-se dele e fora mal recebida. Que o aluno estivesse revoltado não a admirava! Era mais uma gota a juntar ao copo que transbordava há muito. Ficara estupefacta fora com a atitude da mãe que resolvera apresentar queixa opondo-se ao próprio filho. O David considerara o castigo exagerado, mas sabia que fora o seu comportamento indisciplinado que causara o destempero do professor. Não costumava meter-se com o prof. Daniel, um dos seus preferidos, mas o Filipe provocara-o até ao limite e deixara-se ir na onda. Agora era ele quem estava mais aflito com a queixa da mãe. Só não sabia como havia de resolver o problema do professor sem agravar a sua própria situação. Por isso, recorrera à Diretora de Turma.
E agora, ali estava ela, Madre Teresa de Calcutá, a procurar desembrulhar o pacote sem rasgar o papel deslindando os nós cegos dos laços com que o haviam atado. Tarefa que se mostrava gigantesca para as suas pobres forças e o Daniel não estava a ajudar em nada. Recusara o diálogo, não queria falar com ninguém e, desabridamente, replicara que se entenderia com a polícia se era isso que o David queria. Joana sentia-se de mãos atadas: o seu encontro com mãe do David saldara-se por uma conversa de surdos (como é que uma desequilibrada que batia no filho desalmadamente podia apresentar queixa na GNR por uma chapada exagerada mas merecida?) e estava à espera que o Conselho de Turma fosse um autêntico campo de batalha com os professores a tomarem o partido de um ou de outro. Que embrulhada!
E aflita, desalinhava os cabelos já desalinhados. Um tique que mantivera desde a juventude e que demonstrava a tensão nervosa que a dominava. Foi com dificuldade que se dominou naquela última aula, em que a heteroavaliação fora um caos e a autoavaliação não saíra melhor. Normalmente, numa primeira vez até aceitava a situação do “pedido de notas” em vez da indicação das notas merecidas, mas naquele dia saiu-lhe um sermão ríspido, nada simpático, que provocou algumas lágrimas e um silêncio sentido. Céus! Estava mesmo a ficar uma bruxa!
As horas que antecederam o encontro, marcado para as quatro da tarde, passou-as a roer as unhas e a fingir que preparava os materiais para o Conselho de Turma. Pura aldrabice! Não fizera literalmente nada. E era ela a maior!
Quando entrou naquela sala para enfrentar o pior desafio da sua vida, ficou especada à entrada. Os dois Ds e dois guardas estavam em amena cavaqueira, à esquerda; do outro lado da sala, os professores confraternizavam animadamente. Só podia estar a delirar! Beliscou-se para ver se estava acordada. Foi o David o primeiro a vê-la.
─ Setôra, está tudo resolvido. Já não há queixa na polícia, já pedi desculpa ao setôr e não há mais nada para tratar.
─ Mas… não há nada como?
Com um ar gaiato e tropeçando nas palavras com a excitação, o David lá foi contando a história, corroborado pelos dois agentes que o olhavam com admiração.
─ Mas… a tua mãe…
─ A minha mãe foi à guarda e anulou a queixa que era a única coisa que tinha de fazer. Aliás, não tinha de se meter- acrescentou a última frase em voz baixa remoendo as palavras.
─ Ó David, ela não te levou ao hospital por causa de uns arranhões que tinhas no pescoço feitos pelo professor?
─ Levou e então?
Os olhos brilharam-lhe em ar de desafio. Forçara a mãe a dar o dito por não dito, ameaçando-a que diria que tinha sido ela a autora dos arranhões (o que aliás acontecia frequentemente, quando ela o espancava) e acabara por fazer amizade com os dois guardas que se tinham oferecido para o acompanhar e esclarecer tudo. Também iam resolver o caso com a mãe, porque a próxima cena de pancadaria seria comunicada no posto da guarda. Portanto a mãe ainda fora buscar lenha para se queimar… Quanto ao professor, amigos como dantes.
O Conselho de Turma acabou por não se realizar. E ela estabeleceu contacto com a GNR de que ainda viria a beneficiar.
Maria Teresa Portal Oliveira
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