Uma história às avessas

Uma história às avessas

Blogue > Contos Infantojuvenis > Uma história às avessas

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

terça-feira, 12 de dezembro de 2023


Era uma vez uma história às avessas. O príncipe e a princesa não viveram felizes para sempre, porque nem se chegaram a encontrar. Não havia nenhum castelo e muito menos uma terra distante onde um cavaleiro, na realidade um príncipe disfarçado, pudesse salvar alguma donzela em perigo, também ela futura princesa.

A falar verdade, esta história existe nem sei bem como. É uma rebelde. Resolveu tomar o freio nos dentes e fazer o que lhe dá na gana, sem prestar contas do que se passa nem do rumo que as coisas tomam. É assim um nariz empinado e, normalmente, não me dou bem com pessoas destas, ou seja, com coisas destas. Há quem confunda esta rebeldia com personalidade forte, mas eu distingo-as perfeitamente.

Ora, pelo que pude perceber, a história passa-se algures, no tempo das cavernas, ao que parece, em que o homem se diferenciava muito pouco dos animais. Não sei bem se, por aquela altura, se poderia já considerar um animal racional. De raciocínio, tinha muito pouco e esta história também.

Pelos vistos, o homem já andava ereto, daí o nome que lhe davam, e levava o fogo consigo quando se movia. Como não podia correr o risco de que se apagasse, havia um guarda do fogo. Havia alguns (poucos!) que tinham essa habilidade prodigiosa, o dom, de ao esfregarem e baterem dois paus conseguirem produzir o milagre do fogo. Eram dos mais respeitados e venerados pela sua magia.

Ora, se não havia ainda a linguagem oral e menos ainda a escrita (quantos milhares de anos separavam o homem desses acontecimentos!), isso quer dizer que não havia histórias, pelo menos não da maneira que as conhecemos. Os casos aconteciam e será que havia imaginação? Com uma vida tão difícil, haveria lugar para o sonho? Bem, os sarrabiscos encontrados nas cavernas, a que chamam pinturas rupestres, podem disso ser testemunha, não sei. De qualquer modo, uma coisa era certa. Apenas narravam caçadas e, pelos vistos, antes de se concretizarem… como se fosse assim uma espécie de amuleto para dar sorte.

De qualquer modo, um tempo demasiado primitivo para o meu gosto e para o da nossa história que, repentinamente, com uma bela cambalhota foi aterrar no meio de uma guerra.

Ela bem não queria, avessa como era a essas coisas, mas, arma na mão, teve de se transformar em soldado do pé para a mão, dando pancada a torto e a direito nos castelhanos, presumo. Sendo portuguesa e vivendo neste cantinho da Península Ibérica só poderia estar a lutar com o povo vizinho (mas não eram cotas de malha nem armaduras pesadonas)… ou com mouros (não tinham turbante nem sabres)… ou com franceses… isso, Napoleão e as Invasões Napoleónicas, que haviam posto o país de rastos, saqueado e roubado. “Soldados, lá de cima quarenta séculos vos contemplam”, dissera ele aos seus homens no Egito, bem junto das pirâmides. Perdera a batalha, porém ganhara a campanha ao abrir o Egito aos olhos da ciência europeia que traria à luz o passado daquela civilização esquecida e enterrada nas areias de um tempo milenar. Foi a pedra Roseta, descoberta em 1799, que proporcionou a chave que permitiu decifrar a escrita hieroglífica egípcia. E…

Tive de amordaçar a história que ameaçava tornar-se em História e desempenhar o papel de historiadora do Mundo Antigo ou de um velho professor de uma qualquer universidade europeia.

Não gostou nada que lhe calasse o bico. Tentou um protesto. No entanto, a incursão pelo mundo antigo e pelos papiros e pergaminhos empoeirados provocou-lhe rinite alérgica e começou a espirrar continuamente e ficou com o nariz todo pingão, a escorrer. Malditas crises que surgiam nas piores ocasiões!

Para uma história às avessas estava a virar uma história sem pés nem cabeça. Nem história de jeito conseguia ser… Onde já se viu uma história sem personagens, sem espaço, sem tempo, sem ações?

Que maluquice! Tinha de encontrar o fio à meada e retomar a história de imediato.

As Guerras Napoleónicas não eram um tema que a entusiasmasse. Os ditadores tinham o seu quê de fascinantes, mas cansavam-na. Eram tão egocêntricos que a aborreciam.

Com um novo salto foi aterrar numa nau que cruzava os oceanos e rumava a Índia. Ainda viu um barbudo que reconheceu vagamente como sendo Vasco da Gama. Também não lhe agradou. A vida a bordo era muito dura e o escorbuto e outras doenças nada agradáveis eram uma constante naquelas viagens. Por outro lado, detestava espaços pequenos e aquela casquinha de noz, que trepava as vagas alterosas do mar tenebroso e parecia desmanchar-se a todo o momento, era demasiado débil e diminuta.

Fugiu dali num abrir e fechar de olhos. Tinha de encontrar refúgio numa época e num local do seu agrado.

Abriu os olhos e viu-se envolta num nevoeiro cerrado. E veio-lhe à ideia o D. Sebastião que voltaria numa manhã de nevoeiro. Irra! Que a História tinha-lhe mesmo dado a volta ao juízo! Quem se lembraria de fazer uma história com um rei tão infeliz que deixou o país entregue aos castelhanos durante sessenta anos?

Não lhe dei hipótese para se situar numa ocasião tão nefasta e com um safanão, lá a consegui levar para longe da bruma ameaçadora.

Com tantas andanças e indecisões, a noite instalara-se e não havia ponta de história. Nem um breve começo, um pequeno arremesso que desse algumas informações. Não havia nada. Apenas silêncio e uns bocejos angustiantes e aflitivos de quem muito trabalhou e tem direito ao descanso… Só que… o trabalho ninguém o viu e, da forma como as coisas estão, parece-me que ninguém vai enxergar.

Resolvi virar costas à mal-humorada e deixá-la seguir o caminho que bem entendesse, desde que longe da minha vista.

Nunca me vira noutras alhadas…

< ANTERIOR

As Gémeas Diabólicas

PRÓXIMO >

Os Dois Ds

Maria Teresa Portal Oliveira

A ALQUIMIA DAS PALAVRAS

Maria Teresa Portal Oliveira

A ALQUIMIA DAS PALAVRAS

A Alquimia das Palavras

Maria Teresa Portal Oliveira

Links Rápidos

Siga-me

Newsletter

Receberás notícias minhas regularmente!

A Alquimia das Palavras

Maria Teresa Portal Oliveira

Newsletter

Receberás notícias minhas regularmente!

© 2021 | Maria Teresa Portal Oliveira

© 2021 | Maria Teresa Portal Oliveira I Política de Privacidade | Termos & Condições